quarta-feira, maio 26, 2004

Rafael


Saímos da Praia das Fontes de manhã bem cedo, em grupos de 5, cada um em seu jipe.

Seguimos por estrada até Fortaleza, a 90 Km dali, onde parámos para um primeiro abastecimento, esticar as pernas, levantar dinheiro, etc.

A partir daí, seguimos sempre junto ao mar, em direcção ao norte, a Jericoacoara, a cerca de 400 Km de distância.

Passámos ribeiros, dunas e outros obstáculos com uma facilidade só possível devido à experiência dos nossos guias e condutores.
O do meu jipe era Índio, certificado pela FUNAi e tudo - era ele que conduzia a caravana. Era um sujeito baixo, entroncado, cabelo muito curto, e uma pele algures entre o castanho, o vermelho (talvez ocre?), e o bronze.

A meio da manhã, numa das praias, observámos um bando de abutres (urubús ou carcarás), voando em círculos sobre um determinado ponto. Já mais perto, percebemos que outro bando já se deliciava com um manjar macabro: uma tartaruga marinha gigante, já sem olhos e putrefacta (morta de velha, segundo o guia).

Ao fim da manhã chegámos a Lagoínha, uma praia magnífica de coqueiros altos e frondosos, onde parámos para almoçar.
Impossível resistir àquela água quente e transparente, que chegava mesmo às mesas da esplanada.

No fim do almoço apareceu o Rafael, miúdo de 11 anos, sujo como breu, a vender cocada (doce de côco, açúcar e leite condensado).
Perguntou-me se podia comer as batatas fritas que eu não quisera, ao que acedi. Mandei-o sentar, e servimos-lhe a bandeja de peixe que tinha sobrado. Comeu um e pediu para mandarmos embrulhar os outros para a família.

"- Quantos irmãos tem você, Rafael?" - perguntei.
"- Nove!" - responde. "- Aqui todo o homem é corno! Meu pai é corno! Meus irmãos são filhos de vários pais! Aqui a mulher não pára quieta - você quer uma mulher?"
As minhas colegas olharam, escandalizadas. Os colegas riam-se, deliciados.
Mudei a conversa:
"- O que você quer ser? Jogador de Futebol?"
"- Quero ser advogado!" - respondeu de imediato "- Ganham muito mais!".
"- Mas para isso você precisa estudar muito, e mentir bem!" - disse, meu a sério, meio a brincar.
"-Toda a manhã eu vou à escola" - respondeu "- E você acreditou que eu tinha nove irmãos, não acreditou?".
Sorri em silêncio.
"- Você tem futuro, Rafael!".
Depois, tirei-lhe uma fotografia, com a promessa de enviá-la para ele através da guia, mais tarde.
"- E caderninho? Você manda caderninho para mim?" - perguntou.
"- Eu vou enviar a foto por correio electrónico - não posso mandar o caderninho" -respondi.
Situação remediada de imediato, quando o resto do pessoal comprou as cocadas por um preço superior ao pedido.

No fim do almoço, voltámos ao caminho. Mais sete horas de viagem até chegar ao destino final, já de noite, e com duas paragens para descansar no caminho, mas agora sempre em estrada, uma vez que a maré cheia impedia que continuássemos à beira-mar.

Nessa noite ainda fomos jantar (alguns não resistiram e ficaram no hotel) e perdemo-nos na noite de Jeri.

Mas esse relato fica para amanhã.


PS: Assim que cheguei a Portugal, enviei a foto do Rafael para a guia, e ela já respondeu a dizer que na próxima semana tem nova excursão, e vai entregar-lha nessa altura.