sexta-feira, maio 28, 2004

O Barqueiro


Na 1ª manhã em Jericoacoara, depois de um pequeno almoço divinal tomado bem junto à praia, debaixo de uma árvore imensa, trocámos o jipe pelo buggy e lá fomos nós à aventura.

Primeiro seguimos pela praia, bem cedo, atingidos por uma chuva miudinha misturada de areia pelo vento, que aleijava a cara, e impedia a visão total da paisagem.

Passámos por vários grupos de pescadores, alguns já com o resultado da sua pescaria, quer fossem camarões ou raias enormes já esquartejadas, prontos a vender ou mesmo a consumir (tinham fogareiros ali ao lado, não sei se para o petisco, se para aquecimento). Mas a chuva não nos deixou parar.

Chegados a uma das aldeias de pescadores, virámos para o interior, em direcção às dunas gigantes que se perfilhavam já no horizonte.

Que dizer? Imaginem um deserto de areia, aos altos e baixos, mas aqui e ali pequenos oásis de coqueiros e outras árvores, arbustos e pequenos lagos.
De início o nosso condutor acelerou ao máximo pela trilha, fazendo-nos saltar ininterruptamente, agarrados com a máxima força aos varões do buggy.
Mas depois dirigiu-se para uma duna imensa à nossa frente e subiu-a a custo, cada vez mais lentamente até chegar ao topo.
Lá em cima deparámo-nos com o precipício: a duna descia quase a pique, e nós com ela - o tipo engatou uma mudança e lá fomos nós!
"- Quais montanhas russas, quais quê - isto é que é radical!!!" - gritava o meu colega do lado, cheio de areia na cara.
A esta seguiu-se outra e outra, mais pequenas, mas com o mesmo efeito.

Até que finalmente chegámos àquela que nem o buggy poderia enfrentar: a sua descida acabava numa lagoa (a lagoa do coração, chamada assim devido à sua forma).
E lá fomos nós, um a um, sentados numa prancha de madeira, fazendo esqui na areia, acabando com um mergulho nas águas cálidas da lagoa.
Depois de umas braçadas e uns mergulhos, faltava o mais difícil: subir a pé aquela imensa massa de areia - uma eternidade!
Por piada, o pessoal que alugava a prancha dizia que a descida custava 3 Reais (+- 1 Euro), mas a subida era oferta (LOL).

Eis-nos de novo em marcha, de buggy, em fila indiana, em direcção à próxima paragem: Lagoa Azul.
Agora deixáva-mos o mar e as dunas para trás, e entrávamos numa área mista, com o chão de areia, mas povoada pelas mais diversas espécies de flora e fauna, e sempre com as águas de uma qualquer lagoa por perto.
Chegados à margem da Lagoa Azul, abandonámos o buggy.
Agora era preciso chegar a uma ilhota paradisíaca que existia no meio do lago de águas azuis transparentes. Para isso, teríamos que ir a nado ou apanhar a barcaça ali existente. E foi isso que fizémos.

Para quem leu Gil Vicente ("Auto da Barca do Inferno") ou estudou a mitologia grega, a ideia de uma barca que atravessa um curso de água para chegar a um destino semi-desconhecido (sabemos o que é mas não como é), tem todo o cabimento aqui - e foi essa associação que fiz de imediato ao ver aquele barqueiro (o nosso Caronte, súbdito de Hades).

Era uma figura inesquecível: de estatura média, super-musculado no tronco e braços, mas com umas pernas atarracadas; a pele vermelha/ocre engelhada pelo excesso de sol; a boca rasgada - imensa, de dentes amarelos enormes, com os lábios gretados do calor; e uns óculos escuros modernos, desses que se vendem nas praias, que impediam de ver a cor dos seus olhos. A rematar, um chapéu à Indiana Jones!

Nunca disse uma palavra nas quatro viagens que teve que fazer para passar toda a gente, embora murmurasse no regresso vários palavrões, devido à luta titãnica que levava a cabo com a corrente e ao peso excessivo da barca carregada de turistas.

Já depois da travessia do meu grupo, enquanto esperava pelos outros, olhava para o meio da lagoa, para aquela barcaça cheia de gente, impulsionada pelo esforço sobre-humano daquele homem e da sua vara que me parecia frágil demais para aquele serviço, e pensava como era irónica a semelhança com a mitologia, excepto a parte final: é que não nos estávamos a dirigir para o Inferno mas para um pequeno Paraíso na Terra.