sexta-feira, novembro 26, 2004

O Resto da Tua Vida


A princípio é simples anda-se sozinho
passa-se nas ruas bem devagarinho
está-se bem no silêncio e no burborinho
bebem-se as certezas num copo de vinho
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo
dá-se a volta ao medo e dá-se a volta ao mundo
diz-se do passado que está moribundo
bebe-se o alento num copo sem fundo
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


E é então que amigos nos oferecem leito
entra-se cansado e sai-se refeito
luta-se por tudo o que se leva a peito
bebe-se e come-se se alguém nos diz bom proveito
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


Depois vem cansaço e o corpo frequeja
molha-se para dentro e já pouco sobeja
pede-se o descanso por curto que seja
apagam-se duvidas num mar de cerveja
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


E enfim duma escolha faz-se um desafio
enfrenta-se a vida de fio a pavio
navega-se sem mar sem vela ou navio
bebe-se a coragem até dum copo vazio
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


Entretanto o tempo fez cinza da brasa
outra maré cheia virá da maré vaza
nasce um novo dia e no braço outra asa
brinda-se aos amores com o vinho da casa
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


O Primeiro Dia - Sérgio Godinho

Estaremos nós condenados a um eterno recomeço?
Não haverá nada que perdure?
"Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe" será mesmo verdade?
Então para quê tudo isto? Apenas para começar de novo?
E não se cansam?

...Eu estou cansado...

Aventuras de Pedro, Sentado


Sentado,
O queixo apoiado na sua mão esquerda
A mão direita pousada sobre as pernas trocadas
E a caneta
E o bloco
E palavras acabadas de escrever
E reticências...
E pontos de interrogação?

Sentado,
Olha o Infinito
Infinito restrito às quatro paredes do quarto
E o papel de parede caindo verticalmente de alto a baixo
E a madeira em rectas, no tecto
E o candeiro luminoso no centro
E a música...
A música do rádio deixado no chão
- Os sons estereotipados do momento
E, de repente,
O silêncio
...Que não acontece!
A música continua
E ele continua

Sentado,
Os olhos fixos no nada
E a estante
E os livros
As palavras escritas pelos outros
E a mesa de cabeceira
E as fotografias
E as palavras nunca ouvidas

Sentado,
A caneta imóvel
O bloco vazio
As palavras que não existem
E o cérebero delira textos nunca escritos
E que nunca ninguém lerá
E a boca declama poemas nunca ditos
E que nunca ninguém ouvirá
E que nem ele recordará daí a pouco

Sentado,
Sonha de olhos abertos.

Sentado,
Dorme acordado.

Sentado,
Vive morto.

PO 01/1990

sábado, novembro 20, 2004

Pode?


Pode alguém ser quem não é?

É estranho no ventre
ser de outro lugar
e tão confusamente
ver desmoronar
um a um sonhos sãos
duas mãos
passando da alegria ao desamor

Pode alguém ser livre
se outro alguém não é
a algema dum outro
serve-me no pé
nas duas mãos,
sonhos vãos,
pesadelos diz-me:

Pode alguém ser quem não é?

Pode alguém ser quem não é - Sérgio Godinho (excerto)

A mim parece-me que sim, que pode... E a vocês?

domingo, novembro 14, 2004

Fim Anunciado


Ao longo dos meses em que estive on-line, blogs apareceram e desapareceram.
Uns para sempre, outros migrando para outras esferas.

Nos que mudavam, registava-se apenas uma mudança de formato, de tema, de quebra com o passado; noutros assistia-se a uma transformação de personalidade, de opinião, de tudo - fazendo esquecer o autor do antigo.

Mas muitos acabaram definitivamente.
Morreram.
Dissiparam-se, sem deixar traço.

Normalmente anunciam o seu fim no próprio momento em que este acontece - com um último post.
Depois, durante algum tempo, registam-se as reacções dos leitores, nos comentários (eventualmente com resposta do autor).

Alguns acabam sem aviso, sem R.I.P. - os visitantes vão lá e nunca mais houve publicação de posts.

Muito raramente, o próprio blog é retirado, sem aviso, deixando-nos perdidos para sempre, sem poder registar a nossa frustração.

Tudo isto para vos dizer, com antecedência, que este blog vai acabar.

Mas não é hoje.

Nem amanhã.

Talvez no fim do mês.

Depende do tempo que tiver para publicar tudo aquilo que já tenho escrito ou em mente.

Porquê?

Porque o objectivo deste blog foi cumprido: todos vós me procuraram, encontraram, descobriram, visitaram, salvaram e, alguns, conheceram.

Spot me! - "descubram-me" - pedi eu.

Right on the Spot - "mesmo em cheio" - foi o resultado da vossa busca.

Stop! - "parem" - e vai parar mesmo.

Ao reler tudo o que escrevi, acho que valeu a pena.

Só tenho pena de não ter guardado todos os vossos comentários.
Nos Posts mais antigos está tudo em branco, uma vez que o sistema de comentários que adoptei não guarda tudo. É pena.

Sabem o meu e-mail - escrevam quando precisarem.

Eu vou aparecendo pelos vossos blogs.

E assinarei como sPOt.

Mas isto ainda não é o adeus final.

Apenas um fim anunciado.

;-)

domingo, novembro 07, 2004

Eu vi um sapo...


"Precisamos ter claro que relacionamento é a possibilidade de trocar afecto e crescer como indivíduos, e também, onde podemos contribuir para o crescimento do outro.
E nós, como indivíduos, crescemos – querendo ou não! Só que às vezes cada um cresce em direcções, sectores e em ritmos diferentes e antes, se havia entendimento e projectos comuns, parece que, de repente, cada um está falando uma língua diferente. Aspiramos coisas que o(a) parceiro(a) parece não estar mais interessado(a) ou, ao contrário, o(a) parceiro(a) parece querer coisas que nem imaginávamos que pudesse desejar. Começa a parecer-nos um(a) estranho(a)! E a culpa não é de ninguém: é bom isto ficar bem claro!
E neste momento estabelece-se claramente a crise!

Além de ser necessário fazer uma recapitulação da relação, precisamos abrir mão do orgulho e do egoísmo, tanto para se ficar numa relação e mantê-la como para se cair fora dela.
Eis o paradoxo! Às vezes não abrimos mão de uma relação só por orgulho ou egoísmo, e às vezes caímos fora também pelos mesmo motivos.

Permitir ao parceiro que tenha planos individuais ou algum hobby pessoal onde não estamos incluídos é necessário e saudável para a própria relação – como também nós devemos ter algo pessoal que não o inclua.
Sentir-se preterido pode indicar algum distúrbio emocional ou carência que deve ser suprida. E ai, movidos por tais dificuldades, tornamo-nos egoístas ou sentimo-nos feridos em nosso orgulho.
Então, depois de se colocar em disponibilidade para a relação (querer); fazer uma retrospectiva da mesma (crescimento de ambos e o rumo que tomaram); abrir mão do egoísmo e do orgulho; e, por fim, antever honestamente quais as perspectivas possíveis que tem esta relação; aí sim, poderemos superar, ou não, a crise que se desenvolveu e instalou.
E eu digo que a realidade é bem mais simples do que os fantasmas que nos atormentam (que são todos os nossos medos!), principalmente quando somos movidos em prol da nossa felicidade e queremos estabelecer uma relação verdadeiramente amorosa."

Maria Aparecida Bressani é psicóloga e psicoterapeuta.